sábado, 24 de setembro de 2016

Necessidades

Lembro que quando eu era criança minha primeira paixão nítida, memorável e tocante foi a Power Ranger rosa, a saudosa Kimberly (ai ai). Aquela saia plissada, a franjinha loira e o olhar de ninfeta me encantavam. Pouco tempo depois passou a ser a Neve Campbell dos filmes de Suspense da série Pânico (eu sei, tinha mal gosto).
Pouco me importava qual era a personalidade de qualquer uma delas. Fascinava-me a beleza. Este parecia o único pré-requisito essencial. Todo o resto poderia ser aprendido durante a relação. A beleza era o único atributo a ser duramente conquistado e, mesmo que ela fosse uma patricinha vazia, seria possível transformá-la em uma mulher decidida e inteligente com o passar dos meses.
Ledo engano.
A beleza, apesar de ter seu peso, não é o fator mais importante. Mais do que te satisfazer na cama ou fazer boa figura ao seu lado pelo parque são necessárias outras realizações.
É preciso alguém que ouça com carinho suas lembranças de infância e que se sinta tocada por elas, que as apreciem como bombons. Caso contrário seria um fardo escutar as recordações um do outro. Ao invés de transformar tais momentos nostálgicos em tardes de riso e lirísmo em uma rede na varanda, vocês teriam conversas enfadonhas cujo o Grand Finale seria: "legal!"Nada mais brochante do que depois de uma narrativa repleta de detalhes íntimos você ouvir um:"legal" seguido de um sorriso amarelo não é mesmo?
É necessário alguém que te ajude durante crises existenciais intermináveis, causadas por algum livro de filosofia ou por uma nostalgia crônica. "Por que nossos amigos de infância se mudam pra lugares distantes?", "E se não conseguirmos visitar todos os países que sonhamos?", "Como será o final de Game of Thrones?" - e sim, há pessoas que conseguem te ajudar nesses e em muitos outros dilemas.Você não acha isso necessário?
Imagine:
- Nossa eu adoro o Jon Snow!
- Quem?
- Esse barbudo da patrulha da noite!
- Ah é, legal!
ou
- Nossa eu adoro o Jon Snow!
- Ele é um personagem que eu também amo, mas olha o arco da Arya Stark, de criancinha rebelde que testemunhou a morte do próprio pai e agora é a vingança sem rosto encarnada.
É disso que eu estou falando. Afinal, cada um de nós possui gostos tão peculiares e idiossincrasias tão íntimas que nos tornamos únicos. Sim, isso mesmo, ÚNICOS. Sem forma, sem cópia, somos todos únicos. Por mais tosca que seja a pessoa ela ainda assim é única, E pra apreciar esse intrincado emaranhando de lembranças, experiências, vivências e sonhos é necessário que a pessoa ao seu lado, além de amante, seja sua melhor amiga, interprete, confidente, que saiba dissolver seu jeito ranzinza com um sorriso e até seja seu sparring de boxe.
Sim isso tudo é necessário pra que quando você cansar dos beijos no banco da praça, quando decidir falar que seu sonho é ser capitã da aeronáutica ou que deseja ter uma casa com jardim e pomar numa cidade do interior, ao invés de ouvir um "sério mesmo?" você ouça: "esse é meu sonho também, mas a casa tem que ser amarela e com janelas brancas!!!" e você, sorrindo e realizado conclua: "Tá ótimo assim!!"

Lembranças

Compráramos um livro de Dungeons and Dragons segunda edição e formamos um grupo de RPG entre meus amigos mais queridos. Reuníamos todas as tardes,  tínhamos até calendários para jogar durante as férias inteiras. Naquele tempo, durante a oitava série, com apenas 14 anos, eu tinha certeza que aquelas tardes de fantasia durariam pra sempre.

Eu e Marcelo conseguimos o download de SimCity 2000. Ficávamos debatendo sobre como produzir uma cidade sem poluição, com baixa criminalidade e, ao invés de cada esquina um bar - como é a realidade do nosso país - cada esquina teria uma biblioteca. Naquela tarde eu projetei uma cidade infalível em meu caderno durante a aula de matemática: quarteirões equidistantes, delegacias com zonas de influência demarcadas, parques para todos, pontos turísticos perto dos quadrantes de comércio e as hidrelétricas manteriam a poluição baixa junto com o enorme cinturão verde que separava as zonas residenciais das zonas industriais. Infelizmente a lógica do jogo não levou quase nada disso em consideração. O jogo era mais pobre do que imaginamos e, ao final, tudo acabava preenchido por enormes arcológicos ou destruído por alienígenas.

Usávamos camisas pretas de Iron Maiden, Nirvana e Guns n' Roses. Nos sentíamos os paladinos da cultura pregando o fim do funk e promovendo o Metal de primeiro mundo. Passávamos tardes na janela ou na varanda imaginando como era morar em um país de primeiro mundo sem aquela cultura popular carnavalesca. Certa vez, cortamos uma bandeira americana da minha meia e a queimamos simbolicamente na janela. Ela caiu em chamas entre as plantas da mãe do Marcelo e  foi uma trapalhada pra conseguirmos apagar.